segunda-feira, 31 de outubro de 2011

"A história ensina, mas não tem alunos"

De: Álvaro Bianchi*

No saguão do prédio da História e Geografia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) há uma faixa com os dizeres: “'A história ensina, mas não tem alunos'. Gramsci. Fora a PM do Campus!!!”. A faixa foi afixada após a ocupação do campus pela Polícia Militar.
Aqueles que afixaram a faixa já foram publicamente chamados de “baderneiros”, “radicais” e “maus estudantes”. Quem conhece pessoalmente os estudantes que se encontram na linha de frente das manifestações das universidades estaduais paulistas sabe que isso é uma bobagem. São muitas vezes bolsistas de iniciação científica, membros de grupos de pesquisa, alunos destacados. Mas mesmo que não fossem com sua faixa mostraram que seus adversários teriam muito a aprender com eles.
A faixa é filologicamente precisa e demonstra não apenas o conhecimento de uma obra complexa como, também, sua razão de ser. Antonio Gramsci escreveu essa passagem em março de 1921. Ela é parte de um artigo publicado no jornal L’Ordine Nuovo, intitulado “Italia e Spagna”. Trata-se de uma denúncia do fascismo, mas também de uma análise precisa do caráter internacional desse movimento reacionário. O artigo começa assim: “O que é o fascismo, visto em escala internacional? É a tentativa de resolver os problemas da produção e da troca através de rajadas de metralhadoras e tiros de pistolas”.
O fascismo, o autor do artigo sabia muito bem, não se preocupava apenas com os problemas da produção e da troca. A reforma fascista da instrução pública dirigida em 1923 por Giovanni Gentile e a criação do Istituto Nazionale Fascista di Cultura, em 1925, atestam sua preocupação em imprimir uma direção cultural à sociedade italiana. Mas tais empreendimentos não deixavam de estar amparados, também eles, em metralhadoras e pistolas.
Em seu artigo contra o fascismo Gramsci protestava contra a crença, presente na Itália e na Espanha, de que os problemas econômicos pudessem ser resolvidos por meio da violência militar das classes dominantes. Para aqueles que alimentavam essa crença, a história não valia de nada. Ela já havia ensinado que não é desse modo que os problemas fundamentais da sociedade encontrariam solução, mas esse ensinamento não encontrava muitos alunos.
A história está a nos ensinar de novo. Metralhadoras e pistolas voltaram a serem usadas, desta vez contra estudantes funcionários e professores da Universidade de São Paulo. É preciso deixar a ingenuidade de lado. A violência policial na USP não foi gratuita. A reitora Suely Vilela da USP não está fora de controle e o governador José Serra não está desinformado. Projetos diferentes de universidade encontram-se há anos em conflito.
Esses projetos antagônicos já estavam enfrentados quando o governador José Serra tentou decretar o fim da autonomia das universidades em 2007 tendo sido derrotado pelo movimento de estudantes, funcionários e docentes. Eles reapareceram com a proposta da Universidade Virtual do Estado de São Paulo, com a ruptura unilateral de negociações com as entidades representativas do movimento de funcionários, docentes e estudantes e com a demissão de um sindicalista da USP que se encontrava no exercício de seu mandato.
Os governos do estado de São Paulo juntamente com os reitores das universidades paulistas querem transformar radicalmente a USP, a Unesp e a Unicamp. Querem cindir a universidade criando ao lado de cursos de excelência, cursos destinados a formar mão-de-obra semiqualificada; querem direcionar os investimentos para uma pesquisa de retaguarda denominada eufemisticamente de “operacional”; querem esvaziar a capacidade crítica das atividades que tem lugar nessas instituições; querem transferir conhecimento e know-how a preços subsidiados para empresas que não estão interessadas em investir nisso mas que estão interessadas nos lucros que podem proporcionar; querem diminuir a participação dos recursos públicos no financiamento da pesquisa, do ensino e da extensão.
Na universidade há os que apóiam essas reformas conservadoras e há os que são contrários a elas. No dia 9 de junho a polícia reprimiu violentamente manifestantes contrários a elas dentro do Campus da universidade atirando a balas de borracha, gás lacrimogêneo e bombas de concussão. O prédio no qual se encontrava aquela simbólica faixa foi militarmente sitiado. Os fatos são eloqüentes. Aqueles que apóiam as reformas conservadoras se mostraram dispostos a recorrer à violência policial para defender suas idéias.
“A ilusão é o alimento mais tenaz da consciência coletiva”, afirmava Gramsci, pouco antes de concluir o texto citado com a frase que hoje encontramos na faixa dos alunos. Aqueles que desejam essas reformas conservadora parecem iludidos de que com “rajadas de metralhadoras e tiros de pistolas” se constrói uma universidade. Deveriam ouvir os alunos. Estes conhecem melhor a história e sabem que o lugar da PM não é no campus.

*Professor do Departamento de Ciências Políticas da UNICAMP , membro da Revista Outubro e do Centro de Estudos Marxistas (CEMARX)

domingo, 23 de outubro de 2011

Vale a pena ler...

Artigos do professor Carlos Walter Porto-Gonçalves, da Pós-graduação em Geografia da UFF. Vale a pena ler...

http://alainet.org/active/show_author.phtml?autor_apellido=Porto-Gon%E7alves&autor_nombre=Carlos+Walter

E um blog de militantes do PSTU...

Para além do binômio Meio Ambiente e Desenvolvimento - I

De: Carlos Walter Porto-Gonçalves*

Carlos Nobre, pesquisador do INPE e membro do IPCC da ONU que produz informes sobre o aquecimento global, chamou a atenção em recente seminário realizado em Brasília, para o ceticismo com que o tema foi recebido e para o caráter recente da ciência que estuda mudanças climáticas. Todavia, mesmo diante do ceticismo e das incertezas, Carlos Nobre assim como muitos outros cientistas apresentam informações bastante consistentes a respeito do aquecimento global. O ceticismo com que o tema foi inicialmente recebido, como dissera Carlos Nobre, foi o mesmo com relação à questão ambiental quando o tema deixou os gabinetes de entidades de defesa da natureza, como o Sierra Club e a União Internacional de Conservação da Natureza - UICN, e passou a ganhar as ruas com o movimento da contracultura nos anos sessenta. A partir dali não se tratava mais simplesmente de convencer governos a criar parques e outras unidades de conservação, mas de debater as implicações que um determinado estilo de vida estava produzindo sobre os recursos naturais do planeta.
Desde o início, o novo ambientalismo que saía das ruas se mostrou preocupado com a pobreza e a miséria reinante na África, na Ásia, na América Latina e no Caribe fazendo duras críticas ao desperdício do consumismo e dos gastos militares, numa clara crítica às sociedades dos países centrais. Vance Packard em seu livro Sociedade do Desperdício reuniu vários exemplos do modo como o capitalismo produzia obsoletismo planejado, tal e qual Marx havia falado de obsoletismo moral. O ceticismo foi enorme. Afinal, como se ousava questionar o estilo de vida que se apresentava como sendo a expressão do progresso e que se vendia ao mundo como “modelo de desenvolvimento”? Embora céticos, os estrategistas dos países centrais, tanto os do estado como os dos estado-maiores das grandes corporações transnacionais, trataram de tomar as suas providências e, para isso, contaram com as elites do 3º mundo que queriam imitar o 1º mundo, como o representante da ditadura brasileira que disse na reunião de Estocolmo, em 1972, que “venham poluir no Brasil, porque ainda é permitido”. E para deixar os rios e o ar dos países centrais limpos, as grandes empresas transnacionais de papel e celulose e de alumínio, altamente poluidoras além de energívoras e aquívoras, se transferiram para o 3º mundo. E aqui, em Porto Alegre, viria se iniciar um novo ambientalismo entre nós e que se forjou num enfrentamento com as corporações de papel e celulose atraídas pela ditadura e que poluía as águas do rio Guaíba, como no caso da transnacional norueguesa Borregaard.
Os grandes magnatas da Fiat, da Olivetti, da IBM e da Remington Rand, entre outras grandes corporações trataram de se reunir no Cube de Roma e financiaram o MIT que produziu o célebre Os Limites do Crescimento, documento que preparou a 1ª conferência mundial de meio ambiente da ONU, em Estocolmo, em 1972.
Desde então começa uma luta tensa e intensa entre o ambientalismo que se mantém como movimento social e ao lado das lutas sociais por justiça social e um ambientalismo que pouco a pouco vai se constituindo através de organizações neo-governamentais. Dessa reunião de Estocolmo surge a recomendação para que nas relações multilaterais entre os estados se inclua uma agenda ambiental e, com isso, se reforça o processo de institucionalização do movimento ambientalista e o processo que procura desqualificar os que se mantém junto às lutas populares na luta por uma sociedade mais justa e ecologicamente responsável. A crítica à “fabricação capitalista da subjetividade”, na precisa expressão de Félix Guatarri (As Três Ecologias) foi um dos instrumentos teóricos brandidos contra oamerican way of life com suas promessas irrealizáveis, mas sem as quais o capitalismo não vive.
A perspectiva ambientalista que aponta para outros horizontes bem distintos do debate que até os anos sessenta comandava a cena política pode ser visto na dura crítica que os ambientalistas fizeram ao então candidato do Partido Comunista à presidência da república da França, em 1974, que prometera que, se eleito, todos os franceses teriam direito a um carro. Não tardou a que fosse exposto ao ridículo posto que o que estaria socializando era o congestionamento do trânsito. Enfim, começava a ficar claro que o socialismo não deveria oferecer a todos o que o capitalismo só dava para alguns, o que, na verdade, afirmava o primado do liberalismo e seu individualismo. Hoje sabemos, conforme nos informa a ONU, que os 20% mais ricos do planeta consomem 84% da matéria e energia transformada anualmente e que os 80% mais pobres só são responsáveis pelo consumo de 16%! Assim, vai por terra o mito malthusiano de que é o crescimento demográfico que estaria colocando o planeta em risco, haja vista ser a pegada ecológica dos ricos o maior problema. E a questão se complexifica ainda mais quando observamos que temos mais ricos e classes médias com esse padrão de consumo ditado pelo 1º mundo no 3º mundo do que no 1º mundo. È o que podemos constatar com as informações insuspeitas do cientista social egípcio Samir Amim que nos informa que, considerando o universo somente da população urbana do mundo, temos 330 milhões vivendo como Classes Médias e Ricas nos países do centro e 390 milhões como Classes Médias e Ricas nos países da periferia! Enfim, temos mais ricos e classes médias na população urbana nos países da periferia do que nos países do centro! Hoje sabemos que 53% da população mundial é urbana e que 70% dos urbanos do mundo estão no 3º mundo.
CLASSES SOCIAIS DA POPULAÇÃO URBANA MUNDIAL
(milhões de habitantes)
CENTRO
PERIFERIA
MUNDO
Classes Médias e Ricas
330
390
720
Classes Populares
Estabilizados
390
330
720
Precários
270
1.290
1.560
Total Classes Populares
660
1.620
2.280
Total Geral
990
2.010.000
3.000.000
Fonte: Samir Amim
O “urbano realmente existente” é muito diferente daquele urbano que deveríamos perseguir quando nos disseram que país desenvolvido eram países com população urbanizada: um bilhão e quinhentos e sessenta milhões de habitantes urbanos vivem como trabalhadores precários, sendo que um bilhão e duzentos e noventa milhões desses vivem nos países da periferia e duzentos e setenta milhões nos países do centro, sendo que destes a maior parte é de imigrantes do 3º mundo, mostrando que o componente colonial (e seu racismo) se mantém no sistema mundo como um todo e mesmo nas periferias dos países do centro, como Nova Iorque, Paris, Londres, Berlin ou Roma. E para alcançar esses números tivemos nos últimos 40 anos a maior expropriação de camponeses e povos originários que o mundo jamais conheceu! Enfim, nos desruralizamos e nos suburbanizamos e hoje temos mais gente exposta às catástrofes naturais (vulcões, furacões, terremotos, deslizamentos de encostas, enchentes) nas cidades do que jamais tivemos em toda a história da humanidade na cidade e no campo! Destruímos o planeta nos últimos 40 anos mais do que em quaisquer outros 40 anos da história! No Brasil, por exemplo, basta ver o que fizemos dos nossos cerrados (savanas) e da nossa Amazônia nesse período! Enfim, destruímos mais nossa casa comum quando mais falamos em salvá-la.
Não há mais lugar para pensar o ambientalismo e o desenvolvimento. É de outras categorias que carecemos. Enfim, é preciso descolonizar o pensamento e paramos de querer ser de 1º mundo. É de outros mundos que carecemos! Um mundo onde caibam muitos mundos, como os zapatistas sugerem. (Segue).

*Professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFF.

‎"Não devemos nos esquecer, nem por um só momento, de que este mundo repleto de seres vivos é uma grande família. A natureza não destinou nenhuma parte dessa propriedade a nenhum indivíduo em particular... Tendo em conta que todos os recursos deste universo constituem um patrimônio comum de todos os seres, como pode haver qualquer justificativa para a existência de um sistema no qual alguns esbanjam riqueza; enquanto outros, desprovidos do alimento mínimo, agonizam e morrem de fome pouco a pouco?"
Prabhat Ranjan Sarkar

De racismo e de sustentabilidade

De: Carlos Walter Porto-Gonçalves*

A questão étnico-racial vem adquirindo nos últimos anos um lugar de destaque no debate teórico-político que há muito tempo lhe era devido. São inúmeras as razões para que isso venha acontecendo. Desde os anos 1950 com a descolonização, com o movimento da negritude na África, e dos anos 1960 com as amplas mobilizações pelos direitos civis nos Estados Unidos da América do Norte (Martin Luther King) e com o movimento negro em que se destacaram, entre outros, Malcolm X e Ângela Davis, que a problemática étnico-racial começou a ganhar visibilidade. Os anos 1990 viriam o movimento indígena agregar suas cores a esse movimento para o que muito contribuiu a comemoração dos 500 anos de constituição do sistema-mundo, em 1992. O movimento indígena soube ler corretamente o significado político daquela data e da Conferência de Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU realizada na cidade do Rio de Janeiro. Afinal, a reunião da ONU se fazia para debater as implicações do modelo de desenvolvimento que havia se afirmado contra outras matrizes de racionalidade e que, agora, convocava uma conferência mundial para discutir temas como a água, o ar, a terra, as plantas e os animais, assuntos com os quais esses povos desenvolveram uma sabedoria original.
Há dois momentos a serem distinguidos nesse processo de emergência desses movimentos que invocam politicamente o debate étnico-racial. O protagonismo do movimento negro estadunidense dos anos sessenta que, entre outras coisas, conquistou em 1964 o direito de votar da imensa população negra daquele país, foi assimilado pelo sistema de poder dominante seja através da repressão, seja através de cooptação. Tom Smith e John Carlos, os vitoriosos atletas negros dos EUA que levantaram seus punhos no podium na Olimpíada do México em 1968 tiveram, rigorosamente falando, que comer o pão que o diabo amassou pelo ostracismo a que foram condenados pela ousadia de se manifestarem contra o racismo. A condenação à miséria e ao desemprego desses atletas acabou sendo estendida ao australiano Peter Norman que no mesmo podium resolveu se solidarizar com os aborígenes do seu país colocando no peito o mesmo adesivo dos atletas dos EUA (Veja foto).

Não foram poucos os intelectuais que passaram a ganhar destaque a partir de então falando dos novos movimentos sociais onde os de caráter étnico-raciais ganhavam destaque junto com o movimento de mulheres, ecológicos e outros. Até mesmo Hollywood se mostrou sensível às reivindicações dessas populações tendo nos oferecido excelentes filmes como O Estranho no Ninho, estrelado por Jack Nicholson, e O Pequeno Grande Homem, estrelado por Dust Hoffman. Desde então, um intenso debate teórico-político vem sendo feito onde os movimentos de caráter classistas, tão enfatizados pela tradição marxista, vêm sendo negligenciados e, até mesmo, antagonizados com relação a esses outros movimentos que, segundo uma tradição pós-moderna que já se desenha a 40 anos, nega as grandes narrativas e a idéia de totalidade. Esse debate, como soe acontecer principalmente no campo das ciências sociais, não é um debate meramente teórico, mas também político como tão bem salientaram Michel Foucault e Pierre Bourdieu, sendo deste a afirmação de que “é da natureza da realidade social a luta permanente para dizer o que é a realidade social”.
Associado a essas lutas epistêmico-políticas veremos nos anos 1980 e 1990 com as reformas neoliberais, sobretudo na América Latina/Abya Yala, a constitucionalização dos direitos dos indígenas e das populações negras em vários países (Colômbia, Peru, Bolívia, Equador, Brasil, entre outros), o que reforçou no campo do pensamento marxista a convicção de que essas políticas específicas conformavam um conjunto de políticas neoliberais que atacavam o princípio universalista das lutas por igualdade social que protagonizaram desde o século 19.
Nesse contexto, a Nicarágua nos ofereceria uma experiência que nos parece fundamental para entendermos a reviravolta que adquire o debate político a partir do étnico-racial. É que na Nicarágua, para além das pressões estadunidenses para combater a revolução sandinista de 1979, os índios Miskitos do litoral caribenho se confrontarão com/contra as perspectivas desenvolvimentistas que os sandinistas etnocentricamente queriam levar para as suas regiões. Há um intenso debate próprio colocado pelos Miskitos que nos ilumina outras situações vividas em outros países, como na Bolívia em 1952. O Movimento Nacionalista Revolucionário boliviano, em 1952, ignorou as tradições quéchuas e aymara dos ayllus, organização territorial de caráter comunitário, e impôs uma reforma agrária de caráter eurocêntrico com divisão das terras para camponeses enquanto proprietários privados. José Carlos Mariáteguui, o renegado marxista peruano que tanto havia se esforçado por nos mostrar a centralidade da questão indígena (eu diria étnico-racial) nos processos revolucionários latino-americanos, se mostrava mais vivo do que nunca tanto na Bolívia de 1952, como na contraditória Nicarágua sandinista de 1979-1989.
A Nicarágua sandinista inaugura um novo momento do debate étnico-racial pós-anos 1960 atualizando, contraditoriamente, Karl Marx com uma das suas mais importantes contribuições à teoria social, quando nos alertara que os homens (e as mulheres, acrescentamos) fazem história, mas não nas circunstâncias que escolheram. Ainda em 1990, na Bolívia e no Equador duas grandes marchas partem das regiões periféricas destes países e rumam para as capitais protagonizando um novo momento na luta dos grupos subalternizados desde o período colonial numa nova conjuntura que, em grande parte, foi propiciada pela brecha aberta pelo reconhecimento dos novos movimentos sociais na sua luta pelo direito à diferença. Ainda que as intenções dessa abertura possam ter sido bem outras, como a de dividir os grupos subalternos que os marxistas procuravam reunir em torno do conceito de classe, devemos também reconhecer que não eram meras concessões, pois respondiam, à sua maneira, às reivindicações que emanavam das contradições instauradas no contraditório processo de nossa formação territorial colonial, onde conformação das classes sociais se deu classificando os dominados a partir da cor de sua pele /ou de sua diferença étnica.
O componente da diferença, sobretudo étnico-racial, não é menos contraditório na Europa, ainda que um estado monocultural tenha sido imposto homogeneizando os diferentes, como Robert Lafont o demonstrou cabalmente em seu livro La Revolucion Regionalista[2]. Aqui na América/Abya Yala a contradição de classes está imbricada estruturalmente na questão étnico-racial constituindo um processo de enclassamento posto que, ao mesmo tempo, é classe e estamento, conceito que abriga a antropofagia que nos caracteriza imbricando categorias analíticas separadas na tradição européia. Darcy Ribeiro, por exemplo, já havia nos alertado para o que chamara de indigenato[3], ou seja, os camponeses etnicamente diferenciados que caracteriza boa parte do nosso continente, sobretudo na Guatemala, México, Peru, Bolívia, Equador, Paraguai, norte da Argentina, sul do Chile, fronteira colombo-venezuelana, Amazônia colombo-brasileira, brasileiro-venezuelana e brasileiro-boliviano-peruana, além do litoral pacífico colombiano majoritariamente negro, para não falarmos dos cimarrones do Suriname e dos afro-americanos da anacrônica colônia francesa da Guiana.
O componente étnico-racial está intimamente imbricado na formação de classes de nosso sistema mundo moderno-colonial, como bem podemos observar nos salários desiguais para trabalho igual não só entre países como entre regiões de um mesmo país, mesmo nos marcos de uma mesma empresa transnacional; nos rejeitos de minérios nas explorações com a poluição das águas e dos solos e no desmatamento nos países da periferia para proveito dos habitantes do centro; no descarte de resíduos radiativos nos mares e terras bem longe dos centros do sistema mundo; nas estratégias de investimentos de indústrias altamente poluentes nos países da periferia, pois em caso de indenização uma vida vale bem menos abaixo do Equador; nas propostas de “seqüestro de carbono” das ONGs associadas às multinacionais do capitalismo verde (sic). Talvez tudo isso nos ajude a entender porque as reuniões da ONU sobre racismo, apesar de conduzidas pelos polidos diplomatas venham tendo desfechos bem pouco nobres. A recente reunião sobre o clima da ONU realizada em Copenhague em dezembro de 2009, também viu os riscos que essa mentalidade colonial continua submetendo toda a humanidade ao querer manter essa geografia desigual de proveitos, para os do norte, e rejeitos, para os dos sul. Afinal, ali em Copenhague se explicitou a secreta relação entre a dominação dos povos considerados selvagens, isto é, da selva, portanto, da natureza, e um modelo civilizatório que quer dominar a natureza, olvidando que nenhuma sociedade pode dela prescindir. Enfim, a crítica ao capitalismo terá que incorporar o componente étnico-racial que conforma a estrutura social do sistema mundo moderno colonial.

[1] Consultar: http://translate.google.com.br/translate?hl=pt-BR&sl=en&u=http://en.wikipedia.org/wiki/Peter_Norman&ei=pZEFStORJ8SJtgeRk_iABw&sa=X&oi=translate&resnum=1&ct=result&prev=/search%3Fq%3DPeter%2BNorman%26hl%3Dpt-BR
[2]Lafont, Robert 1971 La revolución regionalista (Barcelona: Ariel).
[3] Armando Bartra usa a expressão campesíndio em seu El hombre de hierro. Los límites sociales y naturales del capital. Bartra, Armando 2008 El hombre de hierro. Los límites sociales y naturales del capital. UACM/UAM/Editorial Itaca, México.

*Professor do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF.

Prolegômenos sobre esse blog

De: Diogo de Oliveira*

"A Crítica da Crítica Crítica" é o sub-título do livro de Karl Marx e Friedrich Engels "A Sagrada Família", obra em que os autores-fundadores do "socialismo científico" submetem à crítica alguns dos principais autores e pensadores da teoria social da época (meados do século XIX).

O movimento da "crítica crítica" era o que abarcava diversos pensadores, principalmente alemães, que de alguma maneira reagiam à "crítica" da sociedade burguesa da época, feita por autores igualmente burgueses, logo, pela origem de classe sem opção outra de classe, tinha flagrantes limitações. A "crítica crítica" se opunha à "crítica", tentando subverter as perspectivas pró-burguesas desta "crítica" que em quase nada rompia ou transcendia o já "sistema". Porém, a "crítica crítica", também, talvez, por limitações de classe, não rompia ou transcendia em todos os limites possíveis e necessários o já "sistema". A ruptura epistemológica era tão necessária quanto a crítica "profunda" da "crítica crítica".
Assim, Marx e Engels se punham no movimento da "crítica da crítica crítica", objetivando transcender os limites epistêmicos, políticos e de classe dos movimentos anteriores.

Estas rupturas e transcendências são agora mesmo, continuam a ser e nunca deixaram de ser, necessárias. Os movimentos sociais pró-além-do-sistema, ao longo do século XX, fizeram e fazem esforços além-epistêmicos-políticos-e-sociais, de atualização da teoria social de alguma maneira crítica-ao-sistema. Porém, os esforços continuam imensos, e a luta teórica dos que se colocam na trincheira de alguma maneira contra-o-sistema parece não dar conta da imensa tarefa que se põe. Vivemos uma difusão de idéias, pouca integração e comunicação entre elas.

E especialmente a teoria social crítica marxista parece em muitos terrenos (se não todos) ter "parado no tempo", requer atualização e avanço. Mais uma das muitas consequências trágicas do "stalinismo".

(em construção)

*Professor de Geografia da rede estadual e militante do PSTU em Niterói e São Gonçalo.